domingo, 29 de março de 2009

Manhã no Parque

Tomei o café, acendi o cigarro, coloquei os óculos na ponta do nariz e abri o jornal. A manhã estava gostosa, cheia de verdes ao meu redor, o sol querendo aparecer e os passarinhos ciscando ao redor das mesas, na busca de farelos de pão.
- Oi, posso ler o jornal com você?
Como? Como assim? Ler o jornal comigo?
- É. É que eu achei muito bonito você ler o jornal.
Hein? Que é que é isso? Você quer uma parte do jornal, é isso?
- Não, eu não tenho o costume de ler jornal, sabe?, mas é que achei muito bonito.
Tirei os óculos, joguei-os sobre a mesa e encarei um rapaz com menos idade do que o meu filho, com os cabelos compridos e um boné enfiado na metade da cabeça.
- Posso me sentar?
Pode, com todo o meu espanto. Olhei de esguelha, de onde ele viera. Fora de uma mesa além da minha, onde havia outros dois rapazes e um litro de uísque com menos da metade. Olhei meu relógio: 8h15 da manhã. Viiiiiixê, seria uma balada emendada ou alcoólatras que costumam tomar café da manhã à base de uísque?
- Sabe, eu sou de livros, gosto de ler livros.
Sei. Quais?
- Ah, assim, Machado (íntimo... interessante)
Quem mais?
- Bem, outros, quaisquer outros, gosto muito de livros.
Sei.
- Você gosta de ler jornal, não?
Sim, como se pode ver, eu leio jornais.
- Eu não gosto não, mas, como disse, achei muito bonito. Me formei em publicidade, trabalhava na loja do meu pai e larguei porque quero seguir em algo na minha área.
Sei.
- Mas não gostei do curso, achei que não atendeu àquilo que eu queria, porque queria áudio-visual, sabe? Sou vidrado nisso. E você, o que faz?
Eu leio jornais, sou jornalista.
- E como é que se lê jornais?
Você está pedindo uma aula?
- Estou.
E quanto vai pagar por isso?, gargalhei.
- É que você tem jeito de professora. Desculpe eu perguntar, mas qual é a sua idade?
57 longos anos vividos. E nem assim o rapaz desistiu. Ficou naquele papo furado sem o menor sentido. Acendi outro cigarro e ofereci. Ele aceitou, dizendo:
- Eu não fumo, não. Mas vou fumar agora.
Ó, céus, o que é que essa incongruência aparentemente humana está fazendo na minha mesa?
Olha, essa parte do jornal eu já li. Leve para você, quem sabe você começa a gostar. Ah, tem quadrinhos, acho que faz mais o seu gênero. E agora, por favor, me deixe terminar de ler?
- Ah, claro!
Me deu um beijo, agradeceu pelo jornal e saiu, sem cambalear.
Isso foi uma cantada ou apenas uma bebedeira?
Fiquei sem saber. E não me incomodei mais com isso.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Raciocínio torto

Outro dia, uma amiga me disse: "seu blog não deveria se chamar casco-de-burro. Você é uma pessoa tão delicada (hã?????), tão atenciosa (hã????), tão gentil (hã??hã???). Casco-de-burro nos transporta para algo muito duro..."
Bom, não tenho de mim essa imagem de delicadeza. Muito pelo contrário, me acho bruta no trato diário. Luto para não enxergar apenas o meu umbigo. Procuro ver o dos outros, mas sempre caio naquela de que a minha dor de cabeça é muito mais importante do que o seu câncer, seja ele de quem for. Gentil? Não chegaria a tanto. Tento ser educada. Sempre tentativas.
De qualquer forma, o nome foi escolhido exatamente para dar essa primeira impressão de dureza e, até mesmo, sujeira (somos todos, em certo sentido, um pouco sujos, não?). Mas, se houver o cuidado de ler o que isso significa, no Aurélio, que eu copiei, está, com todas as letras: ver caldeirão. E caldeirão, que não é o sinônimo de casco-de-burro, é algo que também transporta para aquilo que eu pretendia(o) do blog: uma miscelânia de coisas perdidas, de opiniões sem importância, de desabafos de forma geral.
Ao ver caldeirão, está lá: na Bahia, significa "concavidade nos lajedos, da qual se retira os cascalhos, nesses casos quase sempre ricos". Aí, sim, caldeirão é sinônimo de casco-de-burro e a definição quase perfeita para aquilo que pretendo do blog: cascalhos, como pedaços de textos retirados da concavidade de minha cabeça e que, pretenciosamente, poderiam dar às pessoas algumas idéia que, se não ricas, ao menos que as façam pensar ou as distraem. Simples assim, apesar de complicado no raciocínio.
Mas, quem disse que era fácil? Nada, nada nesse mundo é fácil.

sexta-feira, 20 de março de 2009

A velha foto

Quando é que a gente descobre que envelheceu, que o corpo já não mais obedece aos variados comandos que recebe? Pior ainda: reclama, o corpo reclama, silenciosamente, mas é infernal, porque não para. Parece mamãe, que fala sem parar, reclamando de tudo. Mas o corpo é o meu - não o dela que, aliás, diz, também reclama muito.
São as dores, as famosas dores do envelhecimento, como as manchas que vão aparecendo e cobrindo mãos, costas, pernas. Manchas escuras, claras, às vezes avermelhadas ou roxas, de pancadas.
Aí a gente olha aquela foto e não acredita na imensa mudança processada. Hoje eu sei muito mais do que sabia, naquela ocasião. Tenho muito mais experiência de vida, em todos os seus aspectos. Mas, na essência, me sinto a mesma. A foto diz a mim: nananina não! Não é mesmo. De que adianta ter as mesmas sensações, emoções, angústias, alegrias daquele passado que foi ontem e já não aguentar dois dias de faxina? Ou um chopp - um simples chopp - a mais?
Leio tudo sobre esse negócio de terceira idade, melhor idade, quarta idade. O povo vai inventando nomes mas a realidade é uma só: envelhecemos. Quase todos dizem a mesma coisa: é preciso aceitar as limitações impostas pela idade. E, aos poucos, ir mudando hábitos e costumes de então.
Tá. Parece fácil. Tente. Porque eu já conclui: envelhecer é uma merda.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Curtinha

Relapsa, me sinto relapsa com relação ao meu casco-de-burro. Não que me esqueça dele, mas há dias, como o de hoje, por exemplo, que me faltam temas - e há tantos que não consigo encontrar um, aquele que procuro.
Outros dias estou cansada, mas tão cansada que quero deitar meu corpo às 20h, pouco depois das galinhas. É porque também faço, quando necessário, serviço de pedreiro. Meto-me em tudo, à exceção de conserto de carro ou uma simples troca de pneu. Berro por socorro. Porém, dentro de casa, ah, sou auto-suficiente, para as grandes gargalhadas de minha empregada.
Pela manhã, ela chega e já vai perguntando: consertou a máquina de secar? Claro que consertei. E ela vai conferir: mas com durex? E solta aquela risada gostosa que me preenche o dia. Ao que eu respondo: e não me encha o saco, porque está funcionando e é isso o que interessa. Vamos ambas tomar o café e comentar os assuntos em comum: filhos, casa, saúde, violência, trânsito.
Como dizia, ai, que falta de assunto. E sei lá porque, hoje me deu na telha de começar antes mesmo do café e do jornal. Começar do nada - e olha que já deu uma historinha. Muito curtinha, mas vai ficar por isso mesmo.

domingo, 8 de março de 2009

O quê?

"Parabéns pelo Dia Internacional da Mulher, hein?!"
O que as pessoas, homens e mulheres, que assim cumprimentam a nós, querem dizer com isso? Para não parecer tão grossa e tão mal educada, dou um meio sorriso amarelo e agradeço baixinho, o mais baixo possível. Chego quase a baixar a cabeça e sair de mansinho, ocultando a minha vergonha.
Outras, pelo contrário, comemoram o dia com efusão. Conheço uma, em especial, que só falta pular de contentamente batendo palminhas de tanta felicidade! Isso ela não faz, mas presenteia a todas as conhecidas com bombons, balas, flores, bolos, pudins, manda bilhetes por e.mail, cumprimentos com cartões, enche a mesa do escritório com guloseimas as mais variadas e vai distribuindo durante todo o dia 8 de março de cada ano. Enfim, é um dia, para ela, em que se sente plenamente feliz, só por ser mulher.
Bem, eu me sinto feliz por ser mulher todos os dias. Mas o 8 de março, para mim, não é uma data de comemoração. Como explicar isso para tantas felicidades que encontro por aí?
Dá vontade de perguntar: você está me dando parabéns por 147 mulheres operárias norte-americanas que morreram queimadas um incêndio criminoso? Ou porque nessa data as operárias russas deflagaram uma greve geral que precipitou a revolução naquele país? Ou simplesmente porque a ONU instituiu esse dia como sendo o Internacional da Mulher?
E então complementar: o que você, mulher, está fazendo para enfrentar as desigualdades de gênero nas mais distintas áreas, principalmente no Brasil? O que você está fazendo para construir uma sociedade mais justa, que não precisasse de delegacias especiais para mulheres, tamanha a violência que sofremos em praticamente todos os aspectos, mas, principalmente, dentro de nossas próprias casas? O que você está fazendo para educar o seu filho sem lhe passar as manhas do machismo, a maioria das vezes arraigada em você mesma, que nem sequer se dá conta disso?
E você ainda quer comemorar?
O quê?

sábado, 7 de março de 2009

Perguntas. Alguém tem resposta?

"Para arcebispo, aborto é mais grave que estupro", explode a manchete da Folha de hoje. O estuprador, segundo ele, cometeu um pecado - para o qual basta se arrepender, confessar e pronto: vai pro céu, tá perdoado. À mãe e aos médicos, a excomunhão. Devem ir para o inferno, não? A menina, de nove anos, violentada desde os seis, então grávida de gêmeos, está perdoada porque "não tem discernimento".
A questão é simplória assim? Se não houvesse risco para a menina, o que ela faria com seus gêmeos? Brincaria de bonecas com eles, suponho. À Igreja não interessa sequer imaginar o futuro dessas três crianças, não bastasse o sombrio que rondará para sempre o dessa menina violentada. A família, então, ficaria imensamente feliz por estar cumprindo os desígnos de deus (deus quer, deus manda, além do imenso conformismo, é de uma ignorância revoltante). A mãe/avó embalando seus netos; o padrastro/pai/avô já se preparando para a próxima rodada (do primeiro, ele se arrependeu; mas pode se arrepender dos outros também, sem problema), e a mãe/criança não sabendo se troca as fraldas ou vai pular corda no quintal.
Pergunta maldosa, bem maldosa: o arcebispo, por acaso, está defendendo seus pares, aqueles mesmos que cometem abusos sexuais mundo afora e Brasil adentro?