sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Convulsões de um tiro só (Lembranças amargas do Collor)

Orgulhosa da vida, entrei com o pedido do meu sonhado Classic, que me daria o status classe média com seu possante automóvel zero quilômetro. Na ocasião, vendendo meu Monza 86 e com um pouco do dinheiro que crescia na poupança, daria para pagar o veículo à vista. A fábrica não vencia a demanda: o zerinho querido iria demorar. Nos dois meses seguintes, coloquei mais um dinheirinho bem economizado para render, prevenindo para o futuro, pois não?
No terceiro mês após o pedido, comecei a notar o céu escurecendo. Ainda daria para pagar à vista, porém limpando toda a poupança, que já acumulara mais dois décimos terceiros salários.
"Que seja", disse aos meus botões. O desejo de consumo de um zero é maior do que tudo. Percebi que meus botões começaram a duvidar de tamanha ousadia, mas fui em frente, partindo ligeiramente despreocupada para as sonhadas férias, satisfação da família.
A essa altura, fazia quatro meses que estava aguardando a produção do carro. A inflação mordia, faminta, o salário mensal. Mais um mês, nada. "Vai dar, tem de dar", pensava. "Afinal, tanta gente comprando, comprando, comprando desvairadamente..."
Exatamente sete meses e sete aumentos à base de 20% depois, recebi a notícia de que o carro entrara em produção. Friamente, comecei a analisar minha situação financeira, agora já na esperança, digo esperança que desse para pagar. Ainda que não à vista, havia a possibilidade de um financiamento, apertando daqui, apertando dali. Comecei a fazer as contas.
O "meu" zero alcançara o preço de um milhão e setecentos mil cruzados. Meu velho Monza valia 800 mil. Portanto, um menos o outro, estava me faltando um milhão e cem mil. Ou, em outras palavras, um segundo Monza 86 e mais um tanto. Ora, tirando todo o dinheiro da poupança, vendendo aquela corrente de ouro que não dá para usar mesmo, ficando sem comprar alimentos por duas semanas, porque por um mês inteiro mato a todos de fome, vendendo aquele par de sapatos semi-usado que continua me pegando o calcanhar e também aquele quadro que ganhei no Natal, ainda assim preciso de 400 mil cruzados.
Resolvido: faço um financiamento. Peguei no telefone para saber sobre a taxa. Financiando 400 mil em nove meses, que é o maior prazo, teria de desembolsar mensalmente a modesta quantia de 120 mil, eu disse 120 mil cruzados. Se eu tivesse 120 mil para pagar o financiamento, não precisaria de 400, que é pouco menos do que a metade.
Com base nesse raciocínio, desisti do meu carro zero quilômetro.
E comecei a ter convulsões. Durante o banho, no meio da noite, fazendo o jantar. Até que me dei conta que era causada pelo tamanho da frustração do automóvel que eu não conseguira. Atualmente, estou processando o Governo, responsabilizando-o por minha histeria convulsiva. Que ele me pague o tratamento que venho fazendo ou que mate de vez a inflação. Não era um tiro só?

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